Um dos filmes brasileiros agora em alta, com uma atenção que desde Bacurau não se via, é o novo filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui. Já bastante consagrado por outras obras como Central do Brasil e Diários de Motocicleta, mais uma vez o diretor mostra o talento. Também apoiado em um material com um bom valor, já que sua base é um livro de Marcelo Rubens Paiva, consagrado autor de Feliz Ano Velho, o livro mais vendido no Brasil durante a década de 1980. Aqui, assim como no Ano Velho, Marcelo também conta de fatos de sua vida. Se em sua obra mais famosa falava sobre seu acidente que o deixou tetraplégico, em Ainda Estou Aqui fala sobre o desaparecimento do pai Rubens Paiva, preso e morto pela ditadura.
Ao escolher falar sobre este livro Walter Salles volta a um tema que, embora já bastante falado, é ainda muito caro e importante para a sociedade brasileira, tendo em vista que as consequências dele são ainda muito sentidas e se tem ainda criado uma cultura de saudosismo por este momento, muito encarnada no bolsonarismo, mas também em outras coisas. E, neste caso em particular, foi escolhida uma muito interessante abordagem, sob uma igualmente interessante figura, o deputado e engenheiro Rubens Paiva. Tendo sido eleito deputado pelo PTB em 1962, já com um histórico de defesa de questões sociais e trabalhistas foi cassado pela ditadura já em 1964, como parte do AI 1, que cassou os mandatos e suspendeu os partidos políticos. Foi preso, torturado e morto entre os dias 22 e 23 de janeiro de 1971, conforme foi admitido na Comissão da Verdade de 2014.
No filme, focando os eventos no ano de 1971, iniciando pouco após o sequestro deste pela ditadura, temos um foco maior na família de Rubens, incluindo Marcelo ainda criança. O vemos como pai de família e engenheiro, uma vez que após a cassação se afastara da política formal, interpretado por Selton Mello. Após surgirem alguns agentes da ditadura na casa à paisana, o levam para prestar esclarecimento, permanecendo eles mais alguns dias na residência, quando é levado Eunice Paiva, sua esposa, interpretada por Fernanda Torres. Aí temos um dos grandes acertos do filme, que contraria muito do que outros filmes sobre a ditadura fizeram. Que é mostrar a angústia, desespero e opressão da época de maneira crua, sem esperança, apenas um enorme sufoco.
Como a maioria dos filmes sobre a ditadura militar, como Lamarca (1994) e Marighella (2019/2021), focavam nos guerrilheiros, havia mais um elemento de ação e de resistência de luta direta. O que não ocorre aqui. Ao focar em um homem um tanto indefeso frente o aparato militar estatal da época, sobra apenas à angústia, medo, incerteza e a tentativa de seguir em frente que a família Rubens Paiva e tantas outras na época enfrentaram. É muito mais palatável e identificável para o público um homem que é levado, preso, torturado e morto sem capacidade de defesa pelo regime do que guerrilheiros que se organizam em pequenos grupos e tentavam derrubar a ditadura. Que tiveram fins tão trágicos e ruins quanto o de Rubens, mas eram muito menos em número. As maiorias das famílias que perderam pessoas na época se pareciam muito mais com Rubens Paiva do que com Carlos Marighella, por exemplo.
Com isto, as cenas na prisão de Eunice são tensas, apesar de ela não sofrer violência física direta, mas uma psicológica intensa. O interrogatório é pesado, as cenas presas também, especialmente por uma tensão e angústia que permeia todo o filme. As cenas depois são essencialmente cenas de família, ela tentando seguir a vida, cuidando dos filhos, vendo alguns espiões, recebendo informalmente a morte do marido que não poderia ser publicada no Brasil, e também o posterior, com destaque para a cena final passada em 2014. Onde ela bem idosa, agora interpretada por Fernanda Montenegro, vê na TV a repercussão da Comissão da Verdade notificando desaparecidos, incluindo Rubens Paiva. Sem dizer nada,a atriz passa uma fortíssima emoção. Então é um grande filme por si mesmo e como filme sobre a ditadura inova ao focar no sufoco de quem pouco teve como reagir a ela, mostrando o forte sofrimento e perda gerados.